O FOGO SAGRADO
"Por mais que a água do rio o tenha purificado externamente,
limpando-o, como se diz, de tudo quanto turva o juízo da maioria dos mortais, o
aspirante ficaria condenado a vagar sem proveito no domínio da esterilidade, se
retrocedesse diante da prova suprema, a do Fogo. O ardor do Sol faz-se cada vez
maior e anuncia que a prova é iminente. Diante dessa ameaça, o aspirante pode
ainda retroceder, permanecendo às margens do rio, estabelecendo ali sua morada,
à maneira dos moralistas que perdem seu tempo com lamentações sobre as misérias
humanas e belas prédicas que se perdem no deserto".
Fugindo da planície dos conflitos, onde se entrechocam
simultaneamente os antagonismos, o aspirante atravessa o rio da vida coletiva.
Longe de deixar-se levar pela corrente, sabe resistir
às suas mais poderosas investidas e afirma desse modo sua
individualidade. Por fim, triunfou do elemento líquido e, subindo pelo terreno
abrupto da orla, pode do alto, contemplar as águas cujos torvelinhos o separam
do imenso campo de batalha onde os vivos combatem entre si sem trégua alguma.
Essa terra que, de hoje em diante pisa, é a da paz no isolamento como também a
da morte e a da aridez. Quando volta as costas ao rio, se lhe oferece
o espetáculo do deserto no qual penetrou Jesus ao sair das águas
batismais do Jordão.
O Aspirante interna-se pelas areias em meio às rochas calcinadas.
Não há a menor vegetação nem rastro de ser vivente: aqui, o dono
absoluto é o sol que tudo seca e mata. Essa luz que não projeta a menor sombra
corresponde à luz da razão humana que pretende fazer omissão de tudo o que não
seja ela mesma. Esta razão analisa e decompõe, mas sua própria secura
incapacita-a para vivificar o que quer que seja. Bem está que nos esforcemos
para raciocinar com absoluto rigor, mas não criemos certas ilusões sobre o
poder da razão, cujo trabalho não passaria de demolição, caso fosse chamada a
ser a dona absoluta de nossa mente.
Tenhamos bem presente que o Iniciado não deve ser escravo de nada,
nem sequer de uma lógica levada ao extremo.
Se a verdadeira sabedoria nos aparta da vida, de suas alucinações
e de suas quimeras, é simplesmente para ensinar-nos a dominá-la, não ao modo
dos anacoretas que a desdenham, senão como conquistadores do princípio vital
que anima todas as coisas no universo. A potência que rege o mundo tem por
símbolo o fogo, tais como o conceberam os alquimistas: muito longe de consumir
e de destruir, seu ardor anima e constrói. Propaga-se a tudo quanto
vive. Mas o Fogo dos sábios comporta uma infinidade de graus em direta
correspondência com as diferentes vidas que produz sua atividade. É preciso que
um indivíduo saiba inflamar-se de um ardor divino, se pretende ser algo mais
que um autômato incapaz de realizar a Magna Obra. Por mais que a água do rio o
tenha purificado externamente, limpando-o, como se diz, de tudo quanto turva o
juízo da maioria dos mortais, o aspirante ficaria condenado a vagar sem
proveito no domínio da esterilidade, se retrocedesse diante da prova suprema, a
do Fogo. O ardor do Sol faz-se cada vez maior e anuncia que a prova é iminente.
Diante dessa ameaça, o aspirante pode ainda retroceder, permanecendo às margens
do rio, estabelecendo ali sua morada, à maneira dos moralistas que perdem seu
tempo com lamentações sobre as misérias humanas e belas prédicas que se perdem
no deserto. Mas o Iniciado não desperdiça seu tempo com discursos: é um homem
de ação, um agente eficaz da Magna Obra, por cujo meio é criado e transformado
o mundo; se o aspirante sente a vocação do heroísmo, não vacilará em expor à chama
seu pé desnudo. Não retrocederá, ainda que as chamas surjam sob suas plantas,
mas ver-se-á obrigado a deter-se, quando chegarem a formar uma muralha intransponível.
Se quiser voltar atrás, que não perca um instante; ainda é tempo, e tem livre o
caminho para bater em retirada. Mas, se domina a sua angústia e afronta
estoicamente a barreira do fogo, esta cresce e forma duas alas. De pronto,
forma um semicírculo cujas extremidades se unem por fim, deixando o temerário
envolto por completo numa fogueira circular, cujo fogo lhe abrasa. As chamas
aproximam-se cada vez mais do aspirante que permanece impávido, disposto a ser
consumido pelo fogo.
Com efeito, a purificação suprema é obra do fogo que destrói, no
coração do iniciado, até o último germe do egoísmo ou de mesquinha paixão. Este
ardor purificante de que falamos aqui não é outra coisa senão o amor que nos
sinala São Paulo na I Epístola aos Coríntios, nos seguintes termos:
Ainda que eu falasse as
línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa
ou como o címbalo que retine.
E ainda que tivesse o dom
de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que
tivesse toda fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse
amor, nada seria.
E ainda que distribuísse
todos os meus bens para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo
para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me aproveitaria.
Conhecedor das noções iniciáticas difundidas pela corrente do
pensamento helênico, o apóstolo acertou em seu modo de sentir: todos os dons da
inteligência, todos os poderes de ação serão vãos se não forem aplicados ao
serviço da grande causa do bem geral.
É preciso amar, chegar até o sacrifício absoluto de si mesmo, para
ser admitido na cadeia de união dos iniciados. É pelo coração, e tão só pelo
coração, que alguém chega a ser maçom, obreiro fiel e colaborador verdadeiro do
Grande Arquiteto do Universo.
O cerimonial de recepção é simbólico e representa objetivamente o
que deve realizar o candidato em seu foro interno. Se tudo ficasse limitado às
formalidades externas, a iniciação seria meramente simbólica, marcando tão só a
admissão numa confraria de iniciados superficiais que souberam conservar um
conjunto de exterioridades tradicionais e nada mais. Não se veria mais que a
casca do fruto. Sem embargo, no interior está a semente, núcleo central, de tal
maneira que o iniciador que trabalha em conformidade com a letra do ritual, põe
à disposição do verdadeiro candidato um esoterismo velado que se conserva
intacto, ao abrigo de toda profanação. Quando a maçonaria, ou qualquer outra
confraternidade iniciática, faz referência à inviolabilidade de seus segredos,
trata-se não do continente dos segredos, sempre comunicável, senão de seu
conteúdo inteligível. Pode-se divulgar a letra morta, mas não o espírito que os
privilegiados da compreensão saberão penetrar.
De outra parte, é indispensável sentir, para poder compreender. A
ponta de uma espada fere o candidato perto do coração no momento de sua admissão
no Templo para buscar a luz. Antes de poder discernir, devemo-nos abrir às
verdades cujo germe existe em nós.
Não se deve desprezar o intelectualismo; sem embargo, seu domínio
absoluto nos condena a uma estéril e desesperadora atividade especulativa.
Caindo no excesso contrário, a iniciação cavalheiresca desdenhava o saber, para
enaltecer unicamente o amor, inspirador das mais sublimes ações. Melhor
equilibrados, o hermetismo medieval, o rosacrucianismo e a maçonaria moderna
têm preconizado o desenvolvimento simultâneo do intelecto e do sentimento. É
indispensável que nos capacitemos a reconhecer a verdade, a fim de conquistar a
luz que deve iluminar nossas ações. De outra parte, se não tivermos o acicate
de um ideal, como poderemos nos sentir impelidos à Iniciação? O que atrai e
fascina é precisamente uma pressentida beleza. Um amor secreto nos empurra até
o santuário e nos infunde coragem para enfrentar os obstáculos das múltiplas
provas que ainda nos esperam antes de alcançar o móvel desejado.
Ainda que não pudéssemos compreender mais que medianamente, o
essencial seria levar sempre em nosso coração a chama do fogo sagrado, para
sermos capazes de nos elevar quando assim o requerer a ação. Os melhores maçons
não são os mais eruditos nem os mais ilustrados, senão os mais ardentes e
constantes trabalhadores, porque são os mais sinceros e os mais convictos. Quem
ama com fervor está acima daquele que se contenta com o saber: a verdadeira
superioridade afirma-se pelo coração, a câmara secreta de nossa espiritualidade.
Os que não souberam amar perderam-se no deserto sem passar pela
prova de fogo. Cépticos, arrastam sua vida num eterno desencanto. São
verdadeiros fantasmas ambulantes, em vez de homens que honram a vida com
energia. Será necessário o sofrimento para ensinar-lhes o amor. Em resumo, o
sofrimento não é em si um mal, posto que, sem a dor purificadora, ninguém chega
a ser grande.
Oswald Wirth
Compilado por Ir\ Roberto de Jesus Sant´Anna - M\M\
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